Há,
no Harlem, nos E.U.A,
Uma
jovem com dois filhos;
Uma
quase apagada na multidão;
Uma
que guarda dores por baixo da agressividade.
Uma
com uma história que precisa ser contada...
Uma
que você precisa ouvir para acreditar!
Sempre
me questiono se meus problemas são maiores do que os do mundo. Levando-se em
consideração que quem os sente sou eu, aqui dentro, então a resposta sempre
será um sim forte, estridente e gutural, pois a nossa dor interna, e nossa
percepção sobre aqueles que nos cercam, sempre nos soarão maiores, melhores e
justas.
Até
que, em 2007, conheci Holden Caulfield. Ele tinha 17 anos na
época e estava voltando para casa, depois de ser expulso do colégio interno
onde estudava em Nova Iorque. Em O
Apanhador no Campo de Centeio (1951),
Holden simplesmente odeia o mundo. Todos são hipócritas ao seu modo, onde ninguém
é digno de sua confiança cética. Ele, um jovem americano ainda bombardeado por
diretrizes comuns à classe média da qual faz parte, pensa no mundo como um
buraco onde todos nós afundaremos mais e mais a cada dia. Holden pensa que
existe um resquício de esperança. É quando ele se imagina na beira de um
precipício em um grande campo de centeio, com ambas as mãos estendidas, apanhando
as criancinhas que dali cairão enquanto correm.
HOLDEN TEM UM PROBLEMA CONSIGO MESMO
e não pode mudar as pessoas...
Em 2009,
conheci Marian e Laila.
Ambas mulheres; ambas mulçumanas; ambas casadas com o mesmo homem. Marian e
Laila sofrem simplesmente por serem mulheres em uma sociedade onde mulheres e
objetos se coadunam. Sofrem porque descobriram que, infelizmente, não somos
donos de nossos próprios destinos. Em A
Cidade do Sol (2007), de
Khaled Hosseini, quando se encontraram sozinhas, sob a mão pesada de um marido
abusivo, unem-se para construir uma escolha que mudará tudo.
MARIAN E LAILA TÊM UM PROBLEMA COM SEU POVO
e não podem mudar as pessoas...
Nesse domingo,
conheci Claireece "Preciosa" Jones!
Precious
Jones é uma adolescente e resolve contar sua história. Com 16 anos, ela está
grávida do próprio pai pela segunda vez – a primeira foi aos 12 anos. Ao longo
da narração, Preciosa (1996) nos
conta seus sonhos de menina que não teve tempo de brincar. Estuprada pelo pai e
com constantes abusos da mãe, cresceu atormentada pelo sonho de se ver magra e
ter seu rosto estampado na TV como “toda garota branca comum”. Precious é negra
e vive no Harlem quase invisível. Na escola – e nas palavras que aprende a usar
-, encontra a redenção de um coração angustiado que deseja gritar há anos por
socorro. O romance é cercado por dores constantes e pesadas. Logo na primeira
frase, Preciosa é direta:
“Eu
levei bomba quando tava com 12 anos por causa que tive um neném do meu pai. Foi
em 1983.”
Essa
verdade marca uma cadência sobre a vida dela. Verdade essa que se repete e se
torna propulsora das ações e consequências que virão. “Preciosa” mora com a
mãe. Porém, por conta da gravidez e de seu temperamento arredio, é obrigada a
sair da escola. Fora da sala de aula, é aconselhada a frequentar um centro de
aprendizado alternativo. Ali, entre outras seis estranhas em situações tão
fortes quanto a sua, ela conhece a senhorita Rain, uma
jovem professora, radical e batalhadora, por meio da qual Precious terá a
possibilidade de recuperar sua voz e sua dignidade, descobrindo um mundo novo
no qual poderá finalmente entender os próprios sentimentos e se expressar de
uma maneira que nunca antes havia imaginado.
A narração é feita em primeira pessoa e pela própria “Preciosa”,
construída inteiramente por seus termos coloquiais, o que dá mais veracidade às
cenas. Tanto que, em momentos que ela se encontra irritadiça, sua ortografia
muda drasticamente, caindo em recorrentes erros gramaticais. Precious cresceu
sem faltar um único dia de aula, mas nunca aprendeu, em contrapartida, a ler
palavra alguma. A narrativa engatinha juntamente com a conquista da
protagonista pelo poder da palavra escrita.
Antes de tudo, mesmo com o desenrolar de sua vida, Precious sonha. Sonha
em ser alguém em meio a todos os outros. Alguém notado, não somente como um
incômodo na multidão:
Meu pai não me vê de verdade. Se visse ia saber que eu era igual a uma
menina branca, uma pessoa de verdade, por dentro. Não ia montar em
mim o tempo todo e enfiar o pau em mim e me deixar com fogo por dentro,
sangrar, eu sangro e então ele bate em mim. Será que ele não consegue ver que
eu sou uma garota pra flores, perna fina que nem canudinho e um lugar na foto?
Tô fora da foto faz tanto tempo que eu me acostumei. Mas isso não significa que
não dói. (p. 42 – 43)
Sobre essa perspectiva, ela caminha e observa. Observa que o mundo
continua a pertencer aos brancos. Aos que sorriem nos outdoors e nas
propagandas de creme dental. É a eles que o mundo pertence. Aos estereótipos
ideais para aparecer na televisão. Muitas vezes, ela se imagina
naquele seu mundo ideal. Um onde Precious é a garota escolhida pelo
protagonista.
(…) Eu… no meu mundo de dentro eu sou muito linda, tipo uma garota
num comercial, e alguém aparece aqui de carro, alguém que parece que nem o
filho daquele cara que foi morto quando era presidente há um tempão ou o Tom
Cruise – ou alguém assim aparece aqui de carro e eu entro que nem garota da TV.
(p. 46)
Mas, como um mantra, ela se define:
Eu sou Precious ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ
Meu neném nasceu
Meu neném é preto
Eu sou mulher
Sou preta
Quero uma casa para morar (p. 90)
Não esquece sua origem pobre, e, muitas vezes, isso torna-se um fardo.
Ora ela se apresenta orgulhosa com sua origem, seu tom de pele; ora não
acreditar nas justificativas do Destino para não terem deixado ela como uma
garota branca e magra. Quando isso acontece, ela se sente desligada da
realidade em que habita:
(…) Pego a gilete de papai no armário. Corto corto corto o pulso, não
tentando morrer, tentando me ligar de volta. Sou uma TV sem imagem. Tô quebrada
sem pensamento. Sem tempo passado nem presente. Só os filmes de ser outra
pessoa. Uma pessoa que não é gorda, de pele escura, cabelo curto, uma pessoa
que não é fudida. Uma garota rosa e virgem. Uma garota que nem Janet Jackson,
uma garota sensual que ninguém cutuca. Uma garota de valor. Uma garota com
peitinhos pequenos que é um amor. Um aMOOOR! (pág. 127 – 128)
No entanto, a Srta. Blue Rain insiste sobre essa escuridão que paira no
coração de Precious para que ela escreva, para que derrama tudo que existe
dentro de si sobre o papel como um grande pote de tinta derramado sob o papel
branco.
Não tenho nada para escrever, talvez nunca. Agora a marreta tá no meu
coração, me batendo, eu sinto como que meu coração é um rio gigante crescendo
dentro de mim e que eu tô afogando. Minha cabeça tá toda escura por dentro.
Parece que agora tem um rio gigante na minha frente que eu nunca atravesso. A
Srta. Rain diz: Você não tá escrevendo, Precious. Eu digo que tô afogando no
rio. Ela não me olha que nem que eu era maluca mas diz: Se ficar só aí sentada,
o rio vai subir mais e afogar você! A escrita pode ser o barco que vai levar
você por outro lado. Uma vez no seu diário você disse que nunca contou sua
história de verdade. Acho que contar sua história vai levar você por cima desse
rio, Precious. (p. 112)
Aclamado pela critica, Preciosa – Uma história de Esperança alcançou
o primeiro lugar nas principais listas de mais vendidos nos Estados Unidos,
incluindo do New York Times. Foi traduzido para mais de 11 idiomas e deu origem
a um filme homônimo.
No cinema, Gabourey Sidibe encarnou Precious como ninguém! O filme
recebeu indicação de melhor filme no Oscar de 2010, recebendo o Oscar de Melhor
Roteiro Adaptado e o de Melhor Atriz Coadjuvante para Mo’nique, que interpretou
Mary Jones, mãe de Precious.
O livro é uma jornada de dor e meu coração se partia a cada punhalada
que Precious recebia da vida. Cada vez que o Destino e o Tempo agarravam seus
ombros e os sacudiam para lhe gritar outra verdade que a vida pode reservar.
Meu coração se destroçava cada vez que ela revelava mais um de seus
sonhos que, agora, estariam provavelmente desfeitos para sempre; se partia com
a verdade cruel que existe no coração do mundo, entranhando como uma ferida que
somente sangra em um latejar eterno. E, mesmo com seu coração fulminado e suas atitudes grosseiras, Precious
tem um coração que só quer ser ouvido.
O livro é uma jornada de aceitação, não de que a vida pode ser infeliz e
ponto, mas, sim, de aceitar que existe como extrair luz da infelicidade,
bastando apertar bem forte qualquer escuridão.
…
Nesse domingo, conheci Claireece
"Preciosa" Jones!
E entendi que Precious sofreu em
silêncio sem reclamar.
Precious amava a mãe que bateu uma
frigideira contra sua cabeça
enquanto aquela dava à luz ao seu primeiro bebê...
Precious queria um namorado, mesmo
achando que nunca entraria no carro de nenhum garoto...
Precious queria seus filhos, mesmo sem
ter com o quê sustenta-los...
Precious vivia e não reclamava...
Em meio as minhas reclamações e aos
meus problemas, entendi a grande lição deste romance...
Entendi que
O MUNDO TEM UM PROBLEMA COM PRECIOUS
e não estou fazendo
nada para mudar isso...
Por Luvanor N. Alves
Antes deste fim, gostaria de mostrar um dos poemas que Precious leu em
uma aula da Srta. Rain e o dedicou a seu filho.
Ele diz muito sobre o que havia em sua alma...
DE MÃE PARA FILHO, de Langston Hughes
Bom, filho, vou lhe contar:
Minha vida não foi uma escada de cristal.
Havia tachinhas nela,
E farpas,
E tábuas quebradas,
E lugares sem tapetes no chão…
Sem cobertura.
Mas o tempo todo
Tem sido uma subida,
E chegar nos patamares
E virar nos cantos,
E às vezes entrando no escuro
Onde não tem nenhuma luz.
Então, garoto, não volte atrás.
Não desça os degraus
Porque acho meio difícil.
Não caia agora…
Porque eu ainda tô subindo, querido,
Ainda tô subindo,
E a vida para mim não tem sido uma escada de cristal.
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