Há,
em Londres, na Inglaterra;
Um
rapaz que perde tudo quando leva uma estranha para casa;
Uma
estranha com o Poder de Abrir Portas;
Dois
assassinos linguisticamente espertos;
Um
segredo atrás de uma porta lacrada.
E
a verdade sobre a outra Londres que
você nem sabia que existia...
Neil
Gaiman já me apresentou três mundos.
Primeiramente, Coraline (2002); a
menina que seguiu um camundongo por uma porta na parede, semelhante à Alice, de Lewis Carroll, quando esta correu
atrás de um Coelho Branco por sua toca, em 1865. Coraline mostrou as
possibilidades, tanto em se contextualizar um clássico e a ideia de não se
sentir parte de seu próprio mundo, como também ao não se encontrar pertencente
àquele além do solo conhecido. Alice e Coraline são duas garotas chateadas que
veem no outro mundo a chance de se divertir. Mesmo com todo o nonsense de
Carroll, essa verdade se mostra mais assustadora sobre a perspectiva de Gaiman
ao induzir possibilidades monstruosas sobre o que espera Coraline naquele novo
lugar.
Depois,
conheci O Oceano no Fim do Caminho
(2013). Nele, existe um garoto de sete anos e sua amiga Lettie Hempstock. Tudo tem início quando o narrador recorda uma
vez em que um Minerador de Opala que estava hospedado na sua casa roubou o
carro do seu pai e se suicidou no banco traseiro depois de ter perdido todo o
dinheiro dos amigos no jogo. Esta morte permite que um ser sobrenatural ganhe
acesso ao nosso mundo, distribuindo dinheiro às pessoas de forma desagradável.
Assim, depois de uma moeda ficar presa na garganta do narrador durante a noite,
fazendo com que este se engasgue, ele pede ajuda a Lettie e ambos vão descobrir
como o lago atrás da casa dela pode ser tornar um profundo oceano.
Agora,
conheci Lugar Nenhum (2007)!
Sabemos
que existe Londres! Sabemos que existe o tédio e a rotina do ir e vir dos
trabalhadores pelas ruas, cruzando avenidas; circulando a cidade pelo metrô.
Entre eles, encontramos Richard.
Trabalhador comum, com um emprego comum, uma noiva comum. Até que, um dia,
atrasados para um jantar importante, ele ver uma moça surgir do nada por uma
porta em um muro, e cair ao lado dele. Door,
quase desacordada, está com o corpo ferido e sangrando sem parar. Richard, em
um impulso heroico, ergue a moça nos braços e a leva para casa. A partir daí,
sua vida se desfaz. Ele descobre que, abaixo da sua Londres, existe outra
Londres, entre túneis de esgotos e interligada por estações de trem
desativadas. Nela, centenas de pessoas esquecidas habitam, se organizam,
esgueiram-se pela Londres de cima em
busca de algo para trocar.
Nela,
ele descobre que dois assassinos, o sr.
Valdemar e o sr. Croup, acabaram
de matar toda a família de Door e agora estão em busca da garota para terminar
o serviço, afinal, Door tem o Poder de, com um toque, abrir qualquer porta
trancafiada, de abrir portais em paredes para qualquer lugar e que, por isso,
tornou-se um perigo para alguém, merecendo ser exterminada. Assim, Richard
começa a, como os Londrinos de baixo,
se tornar invisível aos de cima. Cabe
a ele agora correr contra o tempo ao lado de Door, do Marquês De Carabás e de Hunter
em busca de respostas e de um modo que o faça retornar à vida de antes, onde
tudo o mais era um tédio só.
Richard
é uma personagem sem a ousadia em excesso de Coraline. Ele é o exemplo de moço
certinho que não aceita que as coisas saiam do racionalmente controlável. Ele
entende o mundo em que vive como um fato consumado, e que sua submissão aos
fatores ditados por este mundo devem ser seguidos em silêncio. Em grande
parcela, isso colabora na construção de seu pessimismo latente que, em dados
momentos, alcança níveis quase insuportáveis de se ler. Richard é o típico
homem contemporâneo que passa metade de sua vida trabalhando, e a outra metade
reclamando das coisas que poderiam ter sido feitas se não tivesse que
trabalhar.
Era
um tarde de sexta-feira. Richard já tinha percebido que os problemas são
covardes: nunca acontecem sozinhos, sempre andam em bandos e se jogam todos de
uma vez em cima da vítima. (p.20)
Assim,
sua vida se tornou um estado de tensão constante, em que, a todo momento,
parece-nos que tudo irá explodir. No entanto, Richard é o bom moço que não
explode.
Richard
odiava penhascos e prédios altos: em algum lugar dentro dele, não muito fundo,
havia o medo – o mais puro e absoluto pavor, daqueles de emudecerem o grito –
de que, se chegasse muito perto da beirada, um impulso de seguir adiante o
dominaria e o faria dar um passo em direção ao vazio. (p. 49)
A
chegada de Door trouxe-lhe a quebra de controle. A chance de está em
literalmente um novo mundo, onde fatos, lugares e pessoas não são mais o que se
pensava, elevam em Richard o paradoxo de está vendo, mas não acreditar, não
confiar nos próprios sentidos.
Richard
define seu estado:
“Na
última sexta-feira, eu tinha um emprego, uma noiva, uma casa e uma vida que
fazia sentido (ou pelo menos tanto quanto é possível uma vida fazer sentido)
até que encontrei uma garota ferida e sangrando na calçada e tentei dar uma de
bom samaritano. Agora não tenho noiva, nem casa, nem emprego e estou
perambulando por um lugar centenas de metros abaixo das ruas de Londres, com
uma expectativa de vida equivalente à de uma libélula suicida.” (p. 115)
Correr
por entre as tubulações, os esgotos, as estações de trem e conhecer seres
mágicos são socos constantes contra a racionalidade de Richard que é obrigado a
entender que existe uma caixa maior fora daquela onde habitava.
Conheço
os escritos de Neil Gaiman por sua peculiaridade narrativa. Sua forma incomum
de referenciar os elementos que estão sendo narrados. Ele pode dizer, em um
momento que narra a morte cruel de uma personagem, os referenciar a quantidade
de sangue espalhada pelo chão e lançado às paredes, que:
“era um homem bem grande e havia muito tempo
que guardava aquilo tudo dentro de si.”
,
como também pode dizer, em uma passagem em que Richard está sobre o topo de um
precipício que:
“Não
estou com medo de cair, disse a si mesmo. Eu tenho medo é da parte em que paro
de cair e começo a morrer.”
Não
comprometerá em nada a compreensão. Gaiman tem o Dom, assim como Door, de
destravar portas em nossa mente, ampliando a perspectiva daquilo que seria
contar uma história. Ele tem a particularidade, e faz isso constantemente ao
longo dos textos, de apresentar a narração sempre por outro ângulo. Veja, ele
poderia dizer que “Richard tem medo do momento em que seu corpo se chocará
contra o solo”, porém torna-se imensamente mais gratificante ler que ele teme o
momento em que deixa de cair e começa a morrer depois do choque. Nisso se
encontra a riqueza narrativa do autor.
Bem
como tem, também, o dom de delinear bons personagens, como os assassinos
Valdemar e Croup, ou, como preferem se alcunhar, eles são:
“Croup
e Valdemar Ltda. Obliteração de obstáculos, erradicação de inconveniências,
extração de membros inoportunos e serviços de odontologia.” (p. 67)
Ambos
são sarcásticos, desafiam a presa como dois leopardos contemplando os inimigos
que logo estarão no chão. Brilhantes conhecedores do léxico, estes fazem uso das
formas linguísticas para melhor desafiarem seus adversários. Perseguir Door e
Richard para mata-los mais parecer um dia de domingo no parque para eles.
De
fato, não sei ao certo o que eles são. Não são humanos, ou pelo menos devam ser
imortais, pois atribuem a si diversos assassinatos ocorridos ao longo da
história por, em média, quinhentos anos atrás. Em uma passagem, quando estes
então arremessando facas contra uma centopeia na parede, vemos o quanto
inumanos estes são:
(…)
O
sr. Croup deu um suspiro.
-
Não acertei? Oh! Valha-me Deus, tem razão. Como pude ser tão tolo? – Ele tirou
as lâminas da parede, uma de cada vez, e as largou na mesa de madeira. – Por que não me mostra como se faz?
O
senhor Valdemar assentiu, colocando a centopeia no pote de geleia vazio. Apoiou
a mão esquerda na parede. Ergueu o braço direito: na mão estava sua faca, uma
faca excelente, afiada e perfeitamente balanceada. Então cerrou os olhos e
arremessou. A faca cruzou o ar bem como uma faca grande e muito afiada cruzaria
o ar em alta velocidade e se cravou no reboco úmido da parede com um som
abafado, atravessando, no caminho, as costas da mão do senhor Valdemar.
(…
) O Senhor Valdemar olhou em volta, satisfeito, a mão ainda presa à parede.
-
É assim que se faz. (p. 66 – 67)
A
lâmina perfura e não os faz sangrar. Nem uma gota sequer.
Quanto
ao Marquês de Carabás, temos uma daquelas personagens que sentimos que foram
criados para serem o diferencial na trama. Na literatura, existem diversos
personagens que trazem consigo o poder de despertar o interesse do leitor sobre
suas esquisitices, sobre seus silêncios, ou sobra a tensão constante de que
irão, a qualquer momento, puxar um coelho da cartola como um mágico, grita um
“tam-dam” e nos surpreender... São personagens que carregam por baixo da vista
nítidos segredos que nos inquietam, como o judeu Max escondido no porão em A
Menina que Roubava Livros (2008), de Markus Zasak, ou o misterioso Olho Arregalado em Sr. Pip (2006), de Lloyd Jones, ou ainda o astuto Alvo Dumbledore, sempre espreitando por
cima dos óculos de meia lua na saga Harry
Potter, de J. K. Rowling.
O
Marquês de Carabás vive sua vida fazendo e cobrando favores, onde não se sabe
de onde veio nem para onde irá. Repleto de respostas astutas, tem a capacidade
de silenciar qualquer discussão usando somente sua sagacidade e sua lábia de
bom mercador.
Se
observamos bem, Lugar Nenhum passa a
ser uma nova busca a’O Mágico de Oz. Door necessita encontrar respostas sobre
quem matou sua família. No percurso, ela constrói seu grupo de modo peculiar.
Richard seria o Espantalho sem cérebro, sempre questionando e duvidando daquilo
que se assoma diante de seus olhos, sendo tomado como um tolo por muitos da
Londres de baixo por considerar tudo
aquilo como algo impossível. O Marquês de Cabarás seria o Leão. Mesmo diante de
toda a sua artimanha prolixa com a linguagem, quando o perigo surge, mostrasse
um verdadeiro covarde em fuga. Quanto a Hunter, a guarda-costas contratada para
proteger Door, vemos a frieza latente em suas atitudes como se fosse apenas uma
máquina de Lata sem coração.
Door
seria, então, a Dorothy d’O Mágico de Oz
(1900), do livro de L. Frank Baum: a garota perdida que somente busca reaver o
que perdeu em seu lar.
Gaiman
gosta de brincar com estes elementos.
Assim,
ler qualquer livro de Gaiman é testar seus conhecimentos. É uma verdadeira
Caçada ao Tesouro perdido. Tratando-se de Gaiman, o “tesouro” não encontram-se
necessariamente entre as páginas de seus livros, mas em o quanto mais fundo ele
é capaz de te fazer ir em sua própria mente, buscando todas as referências que
você já viu, inclusive aqueles que você conquistou quando era tão pequeno(a)
que nunca pensou que poderia estar, na verdade, em lugar nenhum.
Por Luvanor N. Alves
Ótima resenha!
ResponderExcluirMuito bem construída e explicada.
Com certeza este é um livro que vale a pena ser lido.
Owhn, Paulo Roberto! Muito obrigado mesmo por seu apoio e suas palavras! Aguardamos sempre seus comentários!
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