Há, na ilha de Bougainville, na Nova Guiné,
Uma aldeia em um cerco civil;
Um estranho homem com um livro de Charles
Dickens;
Uma menina apaixonada por um personagem;
E uma tristeza que se aproxima, vinda da
floresta...
Um dos maiores prazeres que um
leitor apaixonado por livros pode ter é encontrar um livro que fala de livro.
Uma narração onde a vida das personagens é controlada por outro livro que ganha
força e significação à medida que os fatos se desenrolam e a narração ganha
impulso.
Não me refiro ao tipo de enredo
onde algum personagem está lendo e, eventualmente, o título da obra surge. Falo
daquele tipo de história onde, assim como acontece com a gente enquanto lemos –
e logo depois de findado o trabalho de ler –, a vida das personagens também é
alterada pelo que esta ler ao longo da obra. A meu ver, tal mecanismo nos
permitir dar maior veracidade àquele ser ali descrito, pois o temos como alguém
que, como a gente, também é capaz de ser influenciado por um bom livro.
Quando conheci O Sr. Pip pela primeira vez, o abandonei
após três páginas lidas. Na minha mente de adolescente inquieto (não época com 17
anos) não estava familiarizado com o modo como aquela narradora falava comigo: como alguém que já quer ser um amigo íntimo,
revelando seus segredos.
Hoje, após conhecer muitos
outros narradores que souberam segurar minha mão e me conduzir de modo impar,
como um par romântico em um baile no momento da valsa, decidi aceitar novamente
esta história.
… O que Matilda me
contou nela, fez meu coração querer abraça-la e chorar...
Em O Sr. Pip (2007), de Lloyd Jones, temos Matilda como narradora de
sua história. Alguns anos já se passaram quando decide nos contar o que
aconteceu quando tinha 13 anos e vivia com sua mãe em Bougainville, uma ilha na
Papua Nova Guiné, em 1990. Com o fim da exploração das minas, e com a ilha
cercada por soldados em um bloqueio político e militar durante o período de Guerra
Civil, Matilda vê seu pai partindo para a Austrália em busca de trabalho. Quando
todos os brancos da ilha partem em balsas, a escola e outras atividades são
estagnadas.
No entanto, O Sr. Watts –
ou Olho Arregalado, como costumam chama-lo – o único branco que sobrou na ilha,
decide ensinar as crianças em sala de aula, dedicando às tardes lendo os
capítulos de Grandes Esperanças, de
Charles Dickens. Logo, as crianças se apaixonam pelo protagonista Pip e como
sua vida se desenrola à medida que se vê envergonhado com seu lar e precisa
partir.
Matilda, atenta e empolgada com
o pequeno Pip, sente-se envolvida pela personagem, tendo, como um de seus
maiores desejos, a possibilidade de tocar o livro sempre que passava ao lado da
mesa do Sr. Watts, e visualizada a encadernação em capa dura ali calada. A menina
passa a construir uma obsessão pelo garoto de Dickens. Pip se torna seu amigo.
Para a ira de sua mãe que não entende sobre as ideias que o Sr. Watts
está colocando na cabeça dos pequenos.
À medida que progredíamos na leitura do livro, algo me
aconteceu. Numa certa altura, eu me senti entrar na história. Não tinha ganho
um papel – nada disso; não estava identificada no livro, mas estava lá, sem
dúvida estava lá. Conhecia aquele garoto branco órfão e aquele lugar pequeno e
frágil onde ele se enfiava entre sua horrível irmã e o adorável Joe Gargery
porque o mesmo espaço passou a existir entre o Sr. Watts e minha mãe. E eu
sabia que ia ter de escolher entre os dois. (p. 55)
Matilda, quando na estava na escola, caminhava à praia,
escrevendo o nome de Pip na areia como para torna-lo real, para dar-lhe viva.
Quando os soldados chegam à ilha, e após listarem os moradores da aldeia, um
deles encontra o nome escrito na areia e o pequeno altar feito de conchas na
praia. Então, pensando ser esse o nome de um dos rebeldes escondidos e que não
se encontrava presente na listagem por motivo óbvio, questiona a todo sobre o
paradeiro daquele chamado Pip. Após se esclarecer ser este personagem de um
livro, pede para vê a obra. Na busca, no entanto, o livro desaparece.
Em retaliação, eles destroem tudo, prometendo retorna à
ilha e queimar o que restou, caso o Sr. Pip não apareça na próxima listagem...
Matilda se sente responsável por tudo.
Em meio a estes problemas, o Sr. Watts também não
consegue entender sobre qual fim levou o livro que poderia solucionar o equívoco...
Então, quando mais uma vez a noite chega, os soldados
retornam...
“Onde está o Sr. Pip?”
a voz do capitão ecoa entre o silencio das mentes e o
crepitar das fogueiras...
até que alguém dá uma resposta...
Matilda aprende que existe um universo imenso dentro de
cada livro e que, dependendo de como você o use, é capaz de mudar vidas como
uma mão firme escrevendo sobre uma mesa, pois “em Grandes
Esperanças aprendemos como
a vida pode mudar inesperadamente”. Diversos outros questionamentos surgem
ao longo da história, é quando sentimos que Lloyd Jones está nos preparando
para sofrer.
“(...) Existem
coisas que você nunca espera perder, coisas que você acha que sempre farão
parte de você, mesmo que seja apenas uma unha.” (p. 79)
Matilda, sendo uma garota negra, mesmo vivendo entre
outros da mesma cor, sempre sofreu sobre a verdade dos que são brancos e se
consideravam superiores. Ser branco era sinônimo de dor. O Sr. Watts, para
todos na ilha, é um enigma, uma mágico em um espetáculo sempre no ápice do
show. Até que, em uma das aulas, um dos alunos decide falar.
“(...) Daniel levantou a mão:
-
Sim, Daniel? - disse o sr. Watts.
-
Como é ser branco? (…)
- Como é ser branco? Como é ser branco nesta ilha? Mais ou menos como o último
mamute deve te se sentido, eu acho. Solitário de vez em quando.
(…)
Entretanto, o sr. Watts também tinha uma pergunta.
-
Como é ser preto?
Ele
tinha perguntado a Daniel, mas olhou para toda a classe.
-
Normal – disse Daniel, por todos nós.” (p. 105-106)
O Sr. Watts é o dono da cena, mesmo sem querer ser.
Parado, com seu paletó branco meio manchado pelo uso, aprisiona a atenção de
todos com sua presença marcante e sua oratória como dos ilusionistas.
Se
você prestava bem atenção, via o sr. Watts mergulhando para dentro de si mesmo.
Via seus olhos se fechando, como se estivessem buscando palavras longínquas,
pálidas como estrelas distantes. Ele nunca erguia a voz. Não precisava. Os
únicos ruídos que se ouviam eram o fogo crepitando, o mar sussurrando e a vida
noturna nas árvores despertando o seu sono diurno. Mas, ao ouvir a voz o sr.
Watts, as criaturas também emudeciam. Até as árvores prestavam atenção. E as
mulheres velhas também, e com o respeito que antes reservavam para orar, quando
havia um telhado sob o qual se sentar e um pastor branco alemão a quem olhar.
(p. 187-188)
O Sr. Pip é também um livro de partidas. Trata-se em aceitar que
determinadas coisas se vão, ou, como o curso da vida indica, chega um momento
em que nós é que precisamos ir.
Eu sabia tudo sobre partidas. Tinha aprendido com Pip
como partir de um lugar. Eu sabia que não se olha para trás. (p. 237)
Bem como também trata sobre aquele poder mágico do qual falei
sobre as palavras:
“(...) Mas você sabe, Matilda, é impossível
alguém fingir que está lendo um livro. Os olhos traem você. A respiração
também. Uma pessoa fascinada por um livro simplesmente se esquece de respirar.
A casa pode pegar fogo e quem estiver mergulhado num livro não levanta os
olhos, enquanto o papel de parede não estiver em chamas. Para mim, Matilda, Grandes Esperanças é um desses livros.” (p. 168)
Enquanto as crianças se perdem diante das durezas da
vida, diante da ação da fome, do governo e dos soldados quando retornam, o Sr.
Watts sempre tenta não deixar que a mente igualmente se perca, como se
desabasse para sempre em uma queda sem fim. A literatura é a corda que este
sempre usa para içar os que se lançam ou são empurrados.
Às vezes, as pessoas me perguntam: "Por que Dickens?", o que sempre interpreto como uma leve
censura. Indico o livro que me mostrou um outro mundo numa época em que eu
precisava desesperadamente disso. Ele me deu um amigo, Pip. Ele me ensinou que
se pode entrar na pele de outra pessoa com a mesma facilidade com a que se
entra na sua, mesmo quando essa pele é branca e pertence a um menino que vive
na Inglaterra de Dickens. Ora, se isso não é um ato de magia, eu não sei o que
é. (p. 246)
Em 2012, O Sr. Pip ganhou sua versão para o cinema, tendo o ator Hugh Laurie
(Dr. House) no papel do Sr. Watts.
No romance, chega um momento na
narrativa, quando você já está apaixonado o suficiente por Matilda e pelo Sr.
Watts, em que você para e chora...
Chora com os pulmões...
Chora com o passado...
Chora por todos os que sofreram e foram
apagados, pela Morte e pelos registros, da vida...
O Sr. Pip é um daqueles livros que te
fazem querer chegar o mais rápido em alguém e dizer que o ama...
Pedir um abraço...
Derramar algumas porções de lágrimas para
depois dizer com a maior sinceridade do seu coração mutante:
“Olha, você precisa ler este livro...!”
Por Luvanor N. Alves
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