O Segredista e a Missa da Luxúria, de Cristiano Contreiras

Obra publicada em 2016, pela editora Dalle Piagge

Certa vez conheci um Velho enquanto lia Hemingway. Em O Velho em o Mar (1952), Santiago era pescador em um povoado, onde os anos e as marcas do cansaço contavam histórias sobre seus dedos subjugados pela idade, sem restos do antigo vigor. Ali, ao pescador forte de outrora, era chegado o momento de deixar de ser

“Não pense, velho. Segue o teu rumo e aceita o que vier.”

Mas Santiago não era como os outros. Havia uma voz de autoconhecimento que o obrigava a mergulhar em seus corais internos, morada de peixes e lembranças fortes que nadavam, para encarar o novo ciclo da vida que julgava encerrada.
É sobre o “ato de mergulhar” que muitas narrativas são contadas. Clássicos eternos nos mostram homens e mulheres abrindo seus peitos em rosas, para, em seguida, iniciarem o doloroso efeito de se “despetalar”. Seja Jane Eyre (1847) caminhando faminta por uma charneca, seja o sisudo Bentinho (1899) trancando-se solitário na casa velha.
Na contemporaneidade, outros remodelaram o foco narrativo aprofundando-se no que viria a ser chamado de fluxo de consciência e aproximando o leitor de seus personagens em um mergulho coletivo que desperta, na somente os demônios de quem se narra, mas, também, iluminando as sombras ocultas entre as camadas da alma daquele que folheia as páginas por prazer.
Woolf com sua afeita Mrs. Dalloway (1925), Medeiros e sua esposa/mãe/mulher Mercedes (2002) deitada sobre o divã, Joyce e as metamorfoses de Stephen Dedalus (1916), Acimar e a alma desperta e dorida de Elio (2007) revelaram camadas humanas que os conceitos sociais e pré-definidos, baseados em padronizações e normas rasas, negavam como válidas. Tais obras demonstram a inutilidade em se tentar engarrafar almas.
Cristiano Contreiras, autor de O Segredista e a Missa da Luxúria
É quando surge Contreiras com seu narrador que, em um dia G, segura sua mão e lhe puxa para uma conversa sincera, esteja você preparado ou não para ouvi-lo.  Em O Segredista e a Missa da Luxúria (2016), Cristiano Contreiras – autor soteropolitano e borbulhando sensibilidade e talento narrativo – dá voz a um homem enigmático que se encontra em um momento transitório em sua existência. Como Lestat de Rice, em Contreiras vemos o efeito latente do percurso percorrido do anti-herói, caminho esse submerso em taças de vinho e aromas – e fluidos! – sexuais de uma vida que se pensa completa.
O narrador, em suas narrativas sexuais e conhecedor de seu próprio corpo, e escrevendo a um Ser-Amado que supostamente o lerá, tem ciência de sua influência sobre a vida dos que toca, daqueles que sente sob os dedos e entre as dobras possíveis de sua língua. Veste a carcaça cansada de um Dorian Gray que aceitou a chegada de seu clímax, o momento derradeiro que nenhuma ação - nem Força Divina! - pode indicar destino diferente. 
Cada capítulo é introduzido por uma simbologia dualista masculino x feminino, dar x receber, passivo x ativo sobre as sensações que o permeiam. Ora temos o Espelho de Vênus, onde o narrador desejo, busca e espera, ora o Escudo de Marte, onde faz, age, pensa e se manifesta. Neles, a personagem vê em si uma contradição. Ele é um coração que, embora amando, suspira lamentos poéticos e se vê como único responsável por fulminar, à golpes de erros, seu próprio coração. Semelhante aos Românticos do século XIX, este sepulta sua paixão em camadas de pesar.
No entanto, em Contreiras temos uma voz sensata, refrescada sob o orvalho cinzento do homem moderno, provando que nem só de lamentos vive uma alma cansada. Contreiras cria uma voz máscula, erótica e livre para dar nome (e lambidas) às "palavras do corpo" trancadas em tabus que a carne e os ouvidos alheios fingem não suportar. Ele apresenta uma peculiaridade carnal sobre a visão masculina sendo frágil e forte ao mesmo tempo, que poucas vezes foi vista na literatura. Sobre o viés feminino temos como magistral exemplo Hilda Hilst dissecando o fator “ser mulher” em uma sociedade hipócrita, podre e enfadonha. 
Contreiras aprofunda brilhantemente aquilo que o Eu-lírico de Augusto dos Anjos confronta de modo resoluto em seus Versos Íntimos (1912): a face daqueles que tripudiam, por medo, da vida.

Vés! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de sua última quimera
Somente a ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!”.

Ao narrador de Contreiras há um clamor que exige do mundo um aprofundamento em si. Exige que as pessoas aceitem o “mergulhar”, aceitem se banhar no que há de mais profundo em cada um, abrindo mão da superficialidade comum às relações ditas pós-modernas e abandonando o comportamentos de conformismo, como o de Santiago em O Velho e o Mar, de Hemingway, ao duvidar de sua capacidade, limitando-se aquilo que “dizem que você deve ser”.
 Em Contreiras:

“O mundo deve clamar por sanidade dos atos, das amizades e do amor incondicional. Diante desta sociedade que preza as relações fast-food e momentâneas: eu apenas, a passos largos, me direciono ao desatino completo” (p. 124).

Em sua caminhada, o narrador conhece outras pessoas em busca da própria aceitação pelo prazer:

ALICE, a que precisa!

Alice, sob o movimento cadenciado da mão e o olhar ansioso, revela a imaturidade juvenil que, em alguns, dura por toda a vida.
Ela é o encontro da verdade com a ilusão. Bem com a Alice, de Caroll, que sente que precisa alcançar o Coelho Branco (Em Contreiras, temos a alusão do gozo pálido que precisa ser extraído e visto por Alice, como prova de sua própria capacidade de proporcionar prazer), do contrário tudo ruirá.
Quando acreditados entregar empenho demais, não estamos dispostos, em contrapartida, a receber negações que inviabilizem nossos desejosos frutos; nem entender que, mesmo diante de tantos esforços, eles são infrutíferos. Não queremos enxergar que o outro igualmente possui desejos pessoais além daqueles que considerávamos de fundamento ímpar.
Quando não enxergamos o outro, estamos fadados a sentir que, em algum momento ao longo do esforço, um sonoro “não quero apodrecer contigo” (p.33) brotará como estacas da garganta.
Alguns esforços estão além dos nossos limites; há batalhas das quais precisamos entender que, nem pelo desgaste, nem pelo suposto prêmio no distante final, valem a pena em vista de tamanho esforço.

MATHEUS, o que desabrocha!

“Matheus chegou sozinho. Veio sem um alguém” (p.73)

Matheus é o nosso eterno estado de descoberta. A vida é um grande oceano onde somos peixes de água doce habituando-se a respirar por pulmões claramente já fragilizados.
Contudo, é justamente o reconhecer da solidão que nos dá forças em desbravar, em investigar os limites cruzando pontes. Com isso, aprendemos a viver como nenhum outro. Aprendemos a tocar faringes com a língua de modo impar.
Somos constantemente desabrochar. Somos braços e pernas, mente e coração sofrendo enriquecimento diário.

CASIUS e MARIA, os que se completam!

Os irmãos siameses são bocas, corpos e almas que se completam. Reflexos do mito grego de Hermafrodito, filho de Afrodite e Hermes, que teve seu corpo unido ao de sua amada, a ninfa Salmásis. No ocultismo do tarô, tal ação encontra-se na carta do Mundo, onde vemos a completude de todos os processos e objetivos iniciados, é a felicidade concluída ou a dor finalizada.
Em Contreiras, ambos os irmãos são preenchimento e vertentes de todos os desejos. Não há problematização entre eles. Há apoio, conhecimento, como se possuíssem as almas unidas, além do corpo. No capítulo 16 onde aparecem, constantemente a palavra “chicoteia” nos induz a sentir essa ligação, empurra seus corpos e as possibilidades que a completude desta união trazem. Não há receio, não há indisposição em receber aquele instante.

CAROLINA, a que se devora!

Carolina, enérgica, entregava-se, envolvia-se, confundindo seus suores como o corpo do narrador besuntado de batom.
Carolina é nosso principal desejo em fazer parte de algo, seja de uma roda de amigos, seja de um grupo perdido entre tantos outros nas redes sociais. Seu prazer encontra-se em estar presente, devorada – fio a fio –, inclusa ao momento; uma lâmpada que, ao ser pressionado o interruptor, acende e ascende-se, conectada.
No entanto, é este conectar diário aos afazeres e aos outros que nos desconecta; separamo-nos daquilo que somos em essência e nos transformamos em peças de engrenagem descartáveis com a chegada de outro mais eficiente, “mais conectável”.  Carolina se classificava no sexo semelhante ao resto de sua vida: um verbo transitivo. A “ação-Carolina” era o ser multifacetado, medusa de cabeça serpenteada que ameaça, em algum momento, explodir. 

“Carolina-panela, Carolina-doméstica, Carolina-de-pressão” (p. 129).

Não que esse viver seja algo ruim. Ao narrador, seria o processo de se viver em caixas onde se encontra o problema.  As práticas sistemáticas da vida exigem comportamentos ordenamos, premeditados, transformando os prazeres, os grandes momentos de surpresa que inflam nossos corações, em somente regras do Sistema. É aí que tudo se apaga.

Quanto ao Amor que se espera…

Como Dom Quixote em busca de sua já predestinada Dulcinéa de Toboso, o narrador escreve páginas e páginas em desabafo a uma figura que não se apresenta. Amor seria seu nome, encarnado e evocado como alguém que de certo o ouvirá e atenderá seus pedidos, ou ao menos lerá com atenção seu desabafo.
Como velhos amigos de longa data, o narrador idealiza o ser ch(Amado) como a possibilidade de libertação de todos os seus sentimentos. Do mesmo modo que Holden vê sua irmãzinha como único resquício de bondade entre todos que conhece, em O Apanhador no Campo de Centeio (1951), de J. D. Salinger, o narrador de Contreiras, apesar do discurso fatalista – e, por vezes, pessimista –, encontra no Amor evocado a fonte intocada pelas maledicências do mundo e, assim, pura. 
Vez ou outra, somos apresentados a leves nuances desse encontro, onde vemos seu desejo de retorno:

“Quero de volta aqueles momentos no sofá, nas carícias de colo e janelas abertas da alma” (p. 132)

Mas jamais temos a visão real ou descrição de quem seria esse amor, nem seu sexo. A isso, temos então a possibilidade de questionar se o Amor não poderia ser o próprio sentir. A Sensação personificada por quem ele chama, exigindo seus suores, ouvidos e regresso.
Estamos diante de um navegante que velejou mundos, contornando ondas de corpos com sua nau disposta a mapear percursos por onde seguir remando. Pelo correr dos anos, muito se desgastou e se perdeu. Nem a face apresenta a mesma vicissitude, muito menos o corpo detém a mesma flexibilidade. Benjamin Franklin disse que 

“a tragédia da vida é que ficamos velhos cedo demais. E sábios, tarde demais”. 

Ora, não seria essa compreensão da vida e das pessoas que induz o narrador a avocar (e dar vida!) (a)o Amor como única, e instintiva, forma de render corpos e almas sobre a existência eterna?
O Amor não é moeda de troca. Uma vez tocado, insufla sobre o corpo, quando genuíno, fonte inesgotável de vida que não para. O Amor nos permite compreender que estamos vivos, de coração batendo e desejosos que o amanhã sempre venha.
Contreiras é uma voz preciosa. O coração vivo que observa o mundo e o descreve sem temor. É um autor que coloca em prática aquilo que escreve:
Ele pode 

“amar o breve com toda a rapidez de uma noite inteira” (p.81).


Contreiras é um fôlego que a Literatura merece e o mundo precisa para seguir.  


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