MR. MERCEDES, de Stephen King

Há, no Meio – Oeste, nos E.U.A,
Uma neblina escondendo a madrugada
Uma multidão sonhando com um emprego;
Um Mercedes surgindo na escuridão destruindo sonhos;

E um Detetive Aposentado carregando raiva e uma pistola cheia de balas.

Existe uma luta eterna travada por um escritor de sucesso contra si mesmo: a autossuperação! Trata-se, e aqui me atenho em metáforas, de se levantar todas as manhãs e, após uma vistoria analítica sobre si mesmo em frente ao espelho, questionar-se sobre o que pode ser mudado sobre aquele rosto já conhecido por todos. Quando se tem uma obra de sucesso, com público cativo e entregue avidamente por mais daquele mesmo sabor, é quase uma batalha contra sua própria mente em busca de um novo poço onde umedecer a ponta do pincel da mais sutil e tenra dose de criatividade. Creio que todo escritor bem sucedido seja um tanto libriano em seu Mapa Astral.
O problema se torna mais urgente quando não se têm somente uma, mas, sim, dezenas de obras bem recebidas pelo público e pela crítica especializada (e aqui realizo outra ressalva quanto a esta terminologia, pois, no fim das contas, o público também possui sua porção especialista. Afinal, quem melhor do que o próprio leitor para dizer se aquela obra atingiu, ou não, seu coração?!)
King se enquadra demais neste quesito. Uma vez mais seus dedos ágeis delimitam monstruosidades inimagináveis de modo impar. Quando se pensa que sua fonte secou, ele ressurge por baixo de um lamaçal de sangue, barro e madeira inflamada - restos de seu último trabalho -, mostrando-nos que sua mente ainda consegue mergulhar mais funda neste amontoado de lodo que é a espécie humana, provocando calafrios e a sensação de que  não conhecíamos o mal por completo.

Iniciamos Mr. Mercedes (2014) quando ainda é madrugada onde centenas de pessoas fazem fila em uma feira de emprego, desesperadas por conseguir trabalho. De repente, um único carro surge encoberto pela neblina, avançando para a multidão. O Mercedes atropela vários inocentes, antes de recuar e fazer outra investida. Oito pessoas são mortas e várias ficam feridas. O assassino escapa. Meses depois, o detetive Bill Hodges, ainda atormentado pelo fracasso na resolução do caso, recebe uma carta de alguém que se autodenomina Assassino do Mercedes. Hodges desperta da aposentadoria decidido a encontrar o culpado. Mal sabendo ele que, quando se mata uma vez, o desejo de repetição perdura. Mal sabia ele que o Mr. Mercedes está planejando, desta vez, algo bem maior para marcar a História.

À medida que Hodges analisa a carta e as palavras do Mr. Mercedes, mais ciente fica este de que a maldade humana é uma carro em descida constante e sem freios ladeira abaixo. Como símbolo de seu jogo de gato e rato, Mr. Mercedes distribui sobre a carta inúmeras carinhas com dentes serrilhados que parece sorrir e debochar da pobre e esquecida vida do "Det. Após." (Detetive Aposentado).

Temos aqui uma das personagens mais atormentadas de Stephen King (e mais inevitavelmente detestável, também!). Logo sabendo a identidade do Mr. Mercedes, mas, quando a narração passa a ser contada por suas mãos, sentimos que não é somente Chapeuzinho Vermelho que possui um lobo à espreita.

 (…) há poços na Islândia tão profundos que é possível jogar uma pedra e jamais ouvir o som dela atingindo a fundo. Ele acha que algumas almas humanas também são assim. (p. 34)

King nos direciona a entender a extensão da perversidade de Mr. Mercedes quando indica que este mora na Elm Street, n. 49, mesma rua em que o homem deformado e com garras de aço, Freddy Krueger, atacou um grupo de adolescentes em seus pesadelos, na Hora do Pesadelo (1984).

Seria Mr. Mercedes uma alusão ao instinto dos moradores daquela rua que queimaram em viva Freddy, munidos de ira?
Ou seria ele o próprio Freddy que aponta o cano de sua maldade para os sonhos de outros, apertando o gatilho em seguida? Afinal, nos momentos em que este investiu, foi contra pessoas que lutavam em busca de um sonho a ser realizado (ok! Acho que viajei demais aqui!).

Outro ponto a se referenciar sobre a vida e o comportamento do Mr. Mercedes é um claro complexo de Édipo na narrativa. Assim como o relacionamento entre Norma e Norman Bates em Psicose, de Robert Bloch, Mr. Mercedes apresenta o mesmo trato com a sua:

“- Venha dar um beijo na Mãe, meu amorzinho.
Ele se aproxima do sofá, tentando não olhar para a fenda frontal do roupão e tentando ignorar a sensação rastejante sob seu zíper. Ela vira o rosto para o lado, mas quando ele se inclina para beijá-la no rosto, ela vira a cabeça e pressiona sua boca úmida semi aberta sobre a dele. Ele sente o gosto da bebida e sente o cheiro do perfume que ela sempre passa atrás das orelhas. Ela o passa em outros lugares também.
Ela coloca a palma de uma mão na nuca dele e acaricia seu cabelo com a ponta dos dedos, enviando-lhe um arrepio pelas costas. Ela toca seu lábio superior com a ponta da língua, só um pequeno movimento, um momento, então se afasta e o encara com grandes olhos sedutores.
- Meu amorzinho, - ela suspira, como a heroína de algum filme romântico feminino – do tipo onde homens brandem espadas e as mulheres usam vestidos decotados com seus peitos puxados para cima como bolas reluzentes.” (p. 97)

A referência se confirma quando conhecemos o passado de Mr. Mercedes e descobrimos que o nome de seu pai também era Norman. A questão que fica no decorrer da narrativa – para quem conhece o enredo de Psicose. – é se Mr. Mercedes dará o mesmo fim a sua mãe…

Conforme a narrativa segue, mais entendemos as intenções de ambas as personagens:

Por um lado…
Hodges precisa reaver sua honra a princípio, mas isso fica de lado quando as investidas de outro se tornam pessoais.

Por outro…
Mr. Mercedes tem sede!
Sede em sentir a adrenalina correr novamente por suas veias, assim como quando sentiu o Mercedes tremer quando os pneus esmagaram e retorceram massa humana…
Sede em poder ter a oportunidade de ser lembrado para sempre…
Sede em fazer o “pobre Det. Apos. Sofrer!"

Então, quando o confronto entre os dois finalmente se aproxima, você tem a certeza de que, agora, não é somente o Mr. Mercedes quem está disposto a matar.

Quando você olha para o abismo, Nietzsche escrevera, o abismo também olha para você.
Eu sou o abismo, garotão. Eu. (p. 46)

King é mestre em construir referências em suas obras. É gratificante quando reconhecemos as referências que um autor escrever. Porém, torna-se fantástico quando este usa referências de seus próprios livros…

Como ao citar o Plymouth de Christine, o Carro Assassino (1983):

cinco carros de polícia estavam estacionados no terreno, dois enfileirados bem próximos ao porta-malas do carro, como se os policiais esperassem que o grande sedan cinzento fosse ligar sozinho, como aquele velho Plymouth no filme de terror, e então tentassem fugir. A neblina tinha engrossado para uma chuva fina. (p. 60)

… Ou ao mencionar o monstruoso palhaço Pennywise, de It – A Coisa (1986):

– Assustador para caralho. Já viu aquele filme na TV sobre o palhaço no esgoto?
Hodges meneou a cabeça. Mais tarde - apenas semanas após sua aposentadoria – ele tinha comprado um DVD do filme e Pete tinha razão. O rosto da máscara era muito semelhante ao rosto de Pennywise, o palhaço do filme. Os dois deram a volta novamente no carro, desta vez notando sangue nos (p. 61)

Assim como a referência sutil ao modo como Jack Torrance chamava o filho Danny em O Iluminado (1977):

Jerome Robinson está em seu computador, ouvindo sons em um site chamado “Sounds Good To Me”. Ele ouve uma mulher rindo histericamente. Ouve um homem assoviando “Danny Boy.” Ouve um homem gargalhar e uma mulher, aparentemente nos estertores de um orgasmo. (p. 252)

No entanto, as referências mais legais que acho são as que correlacionam os livros de King aos do filho, Joe Hill, também autor de O Pacto (2010) e Nosferatu (. Nesta, a personagem está usando uma camiseta com Judas Coyne, personagem protagonista do livro escrito por Hill em 2007, A Estrada da Noite:

- Quem sabe Primeiros Socorros? - pergunta o que segurou Hodges.
Um roadie com um longo rabo de cavalo grisalho dá um passo a frente. Ele usa uma camiseta desbotada de Judas Coyne, e seus olhos estão vermelhos brilhantes.
– Eu conheço, cara, mas tô muito louco. (p. 377)

A história de Bill Hodges se desenrola em mais outros dois livros, formando uma trilogia com Achados e Perdidos e culminando em o Último Turno, ambos publicados em 2016.

Mr. Mercedes é um fôlego a mais para a carreira de King. Um capaz de encher outros trezentos balões de ar quente, fazendo-os voarem alto, riscando e tingindo com sangue o céu da manhã.

Eventualmente King brinca de dirigir aquele mesmo Mercedes, investindo contra suas personagens que, inutilmente, só querem escapar e viver.

A mão de King é habilidosa…
… Leve…

E, vez ou outra, faz com que sintamos o estalar dos ossos daqueles que, de modo desgraçado, acabaram debaixo dos pneus.

A mão de King é habilidosa…
… firme…

… E, quando menos percebemos, somos nós quem estamos segurando o volante e pressionando o pé contra o acelerador.
King nos faz querer isso…
Faz com que queiramos sentir a adrenalina com suas palavras.

Faz com que, no fim das contas, sejamos um pouco Mr. Mercedes que só quer mais…

... KING!
MAIS KING!
MAIS KING!
MAIS KING!

Por Luvanor N. Alves








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4 comentários:

  1. Eita, que resenha maravilhosa :D
    Ja faz um tempo que to olhando pra esse livro com vontade de lê-lo mas agora eu preciso ler o quanto antes! Ta maravilhoso o texto, parabéns :3
    www.adoraveisdiasdecao.com.br

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    Respostas
    1. Muito obrigado, Leo!!!! Bom demais quando conseguimos fazer com que o outro sinta a mesma empolgação que a gente com um livro bom!! Fizemos outras resenhas sobre livros do "Rei". Espero que gosta delas também! Abração!!!

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  2. eu tenho muita vontade de ler o stephen king mais não sei nem por onde começar , MR. MERCEDES me chamou atenção primeiro pela capa são lindas espero que esse ano eu consiga pelo menos ler um livro dele :P

    Bjsss

    https://estantedasara.blogspot.com.br/

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  3. Sara, minha querida! King é ótimo!!! Sobre com qual começar, aconselho que seja por Misery - Louca Obsessão! Já fiz uma resenha sobre ele... Anexar o link aqui para que você dê uma olhadinha!

    http://marcadorexpresso.blogspot.com.br/2016/12/misery-louca-obsessao-de-stephen-king.html

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