O VILAREJO, de Raphael Montes

Há, em um Vilarejo já apagado no tempo,
… Os moradores com a Maldade no peito;
… As paredes das casas escondendo vilezas,
Enquanto o frio da neve mastiga as vidraças...

Há uma linha sutil que separa bons escritores… do resto. Esta divisão, muitas vezes, tem mais a ver com o “modo em que se diz algo” do que em “o que se diz”. Escrever, para muitos, é associado a uma complexa cirurgia de peito aberto, assistida por bilhões de espectadores ávidos esperando apenas que você erre. 
Nem sempre é muito esperto escolher o caminho de escritor. Mas, convenhamos, é corajoso! Operar cabeças, troncos e membros buscando sustentar vida é mais complicado do que parece ser. É algo mais instintivo, alguns dirão. Aos que se arriscam, sempre há o caminho da derrota... Mas, em meio a todo ato de risco, existe a possibilidade de se direcionar bem os fusíveis, apertar as bobinas e costuras certas para que o raio vitorioso eletrifique a sua “Coisa” montada sobre a escrivaninha. 
Então, vitorioso e semelhante ao esperançoso Dr. Frankenstein, o escritor grita entre as paredes do quarto que a “Coisa” criada “Está viva!!!”
Arriscar-se a escrever em um gênero que necessita de bastante trabalho visceral pode ser mais suicida ainda… Caso haja falhas… o “monstro” desaparece entre borrachas e lixeiras antes mesmo de poder respirar com conforto. 
Raphael Montes arriscou…
Em O Vilarejo (2015) conhecemos o que fica sobre a neve quando tudo o mais há anos já se perdeu. Colocando-se na obra como tradutor de diários adquiridos através de Elfrida Pimminstoffer, falecida meses antes, descobre em seus estudos que esses trazem relatos de uma população que viveu em um Vilarejo, sem qualquer referência de nomes e locais que os situem em um espaço. Sabe-se, contudo, que estes foram escritos em prosa ciméria. Mas o que termina por chamar a atenção do tradutor, e a nossa, são os relatos de maldades e frieza de um povo que não existe mais. 

O que aconteceu com eles?
O que transformou pessoas “de bem” em carniceiros extasiados pelo derramar de sangue?
E, mais intrigante ainda, quem sobreviveu para revelar em escritos sobre a maldição que devastou o lugar?

A partir desta apresentação, somos apresentados às narrativas que se dividem em contos curtos e que podem ser lidos em qualquer ordem. Cada conto/capítulo, o tradutor nos explica em sua introdução, foi dividido e intitulado de acordo com o nome dos Sete Reis do Inferno: Asmodeu (luxúria), Belzebu (gula), Mammon (ganância), Belphegor (preguiça), Satan (ira), Leviathan (inveja) e Lucifer (soberba). Consequentemente, o conteúdo dos contos terá ligação direta com o demônio que o encabeçou. 
As narrações possuem elo de construção e seguimento de conclusão próprio. No entanto, unidos, a cada leitura concluída, percebe-se que os mesmos seguem, fora sua lógica particular, uma relação de enredo maior, caminhando para uma espécie de conclusão geral. Daí a possível perspectiva de tomá-los, tanto como contos, quanto como capítulos de uma narrativa só. Assim, Rafhael Montes transita entre os dois gêneros facilmente, coexistindo romance e conto em um mesmo veículo. 
Um dos pontos interessantes neste livro é que ele trabalha com o quesito “amplitude de perspectiva”. Ao final do primeiro, você (ainda em choque!) entende o seu todo. Contudo, com o fim da leitura dos outros, o conhecimento que você adquiriu com o primeiro se expande, ampliando sua perspectiva sobre aquele universo. Isso se dá pelas múltiplas focalizações narrativas ao longo da história: ora você é apresentado aos fatos por uma personagem, ora por outra. Algo semelhante foi feito pelo escritor, também brasileiro, Marco Túlio Costa, no seu livro Mágica para Cegos – contos e contra contos (2011) que eu amo demais!! Nele, existe esta mesma dança entre as perspectivas do enredo geral, onde você acaba sendo constantemente enganado por um narrador exímio na arte de “enganar cegos” como nós, que pensamos saber tudo, até que a história é recontada por outro ângulo. 
Agora, falando quanto ao ponto que muito se comentou: 

Raphael Montes é o Stephen King brasileiro? 

Lamento dizer, e contradizer muitos que afirmaram isso, mas não. 
Como leitor de King, posso dizer que erra quem diz que ele é um autor de terror ou suspense apenas por incluir cenas grotescas ou até mesmo inadmissíveis em muitos casos. Pense comigo: para que você consiga assustar, chocar, fazer tremer um leitor (percebam que eu disse LEITOR!) você tem que saber escrever bem. Não me refiro a colocar cenas horripilantes aqui e ali, derramadas pelo texto. Nada disso! Você tem que saber construir, levar, encaminhar o leitor para que, no momento em que uma figura surgir parada no canto da parede entre as sombras, consiga provocar o efeito de arrepio esperado.
Entramos no que eu disse no início: escrever é muito de como se diz algo, e não o que se diz! King sabe nos levar bem. Como já disse antes: 

Ele é o escritor que mais enrola, mas é o que melhor faz isso! 

Mas não estou dizendo que Raphael Montes não sabe escrever. Longe disso! Ele escreve bem. Amarra bem a trama. Direciona bem. Mas, foi isso. Ele direciona o leitor para um caminho e, de repente, “olha aqui, este pé boiando dentro do caldeirão fervente”. Entenderam? Ele não nos preparou até ali. Soou-me mais como se quisesse apenas chocar e

E, então? Vale a pena ler O Vilarejo? 

Vale sim!
Vale muito!
Tanto por ser um escritor brasileiro (e temos sim que abrir as prateleiras para “os de casa”), quanto por ser um livro bem escrito. Que te faz pensar que, nem sempre você conhece o seu vizinho… ...seu cachorro… 
...ou a força de seus próprios dentes!

E, dica, adoro o conto Lúcifer (soberba)!
E o que se descobre em Belphegor (gula), me deixou irrequieto! 

Sem comparações… 
sem usar balanças de precisão, sustentando este ou aquele autor na bandeja oposta…
O Vilarejo é EXATAMENTE como um bom livro de terror/suspense tem que ser: você tem que sentir que, como o Bicho-papão da trama, o autor que o escreveu não tem a menor pena de suas personagens. 

por Luvanor N. Alves

Share on Google Plus

About luvanornalves

This is a short description in the author block about the author. You edit it by entering text in the "Biographical Info" field in the user admin panel.

2 comentários:

  1. Parabéns Luvanor! Mais uma excelente crítica. Ainda não li O Vilarejo, mas está na minha lista desse ano.

    ResponderExcluir